terça-feira, 22 de abril de 2008

Pules que viram pó

Ao longo de muitos e muitos anos de prado, conheci uma enorme fauna de pés frios, gente com poderes contrários aos de Midas, ou seja, tudo em que toca vira pó. Gustavo Gouveia (Gegê para os íntimos) é o primeiro dessa estranha lista, e com méritos.

O homem sempre foi e é um asa negra para si mesmo ou para aqueles que, por infortúnio, dele se aproximam. Fazem parte de sua antologia pessoal coisas do tipo “cavalo em que apostou cair na partida ou no percurso”, “seu preferido, com a vitória assegurada, mancar a poucos metros do disco”, “perder acumuladas premiadas” ou ser “vítima recorrente de desclassificações”. Não fui testemunha, mas ele mesmo me contou que estava entre os muitos que rasgaram pules depositadas em Boticão de Ouro, aquele craque que, à beira da vitória, destroçou os tendões pouco antes de cruzar o disco.

Consciente dessa aura negativa, Gegê já se valeu de todas as mandigas pseudo neutralizantes: ramo de arruda na orelha, figas e fitinhas baianas, nunca entrar com o pé esquerdo no prado, fazer o sinal da cruz antes de chegar ao guichê e até freqüentar terreiros, em busca da ajuda de orixás. Tudo perfeitamente inútil, o azar é e sempre será a sua segunda pele.

O creme de la creme da incrível coleção de azares do Gegê aconteceu em uma remota noturna de Cidade Jardim. Se vencesse um determinado animal do sétimo páreo, ele fecharia uma acumulada milionária, daquelas que o Jockey costumava estampar como chamariz nos recintos frequentados por apostadores. Dada a largada, o fecho do talão tomou a ponta e assim veio até à antiga pedra de apregoações, com a vitória mais que assegurada. Gustavo já estava de pé, gritando à moda dos argentinos – viejo no mas! Eis, que de repente, um drogado, ou bêbado, sei lá, pula a cerca, atravessa a raia de grama e salta bem à frente do ponteiro, que fica irremediavelmente para trás. Branco como cera de vela, Gegê volta a se sentar, murmurando baixinho, como em ritornelo: “Não é possível. Isso só pode ser coisa do demônio!”

Gustavo é meu amigo dileto, freqüento a sua casa, sou padrinho de um de seus filhos e saímos regularmente para um chopinho na Vila Madalena. Mas, no prado, dou voltas e voltas para não cruzar com ele. Quando acontece, a despeito dos meus esforços, tranço os dedos às costas ou procuro rápido um pedaço de madeira para bater três vezes. É que estou meio escalavrado: por muitas e muitas vezes já fui vítima de seus “eflúvios maléficos”.

terça-feira, 15 de abril de 2008

Pendurando o chicote

Jorge Bessa Paulielo, um bridão de muita classe que deixou o país em 2001 para encarar o desafio de montar na Inglaterra, está de volta, mas só curtindo férias, e com uma novidade: pendurou o chicote, 979 vitórias depois. “Já não suportava mais brigar com a balança”, me diz, sem conseguir disfarçar os 20 quilos a mais que adquiriu desde que tomou a decisão de parar, em 2004.

Esse foi, por coinscidência, o melhor ano de Paulielo na Inglaterra. “Consegui minha primeira vitória lá e até um segundo lugar em uma prova de Grupo II, corrida em Ascot, com o cavalo Frankie’s Dream”. Também foi o ano em que conseguiu levar a família (a esposa Andresa e os filhos Gabriel e Luisa) para a cidade onde mora, Epsomdowns, e também por ter se tornado cidadão britânico.

Jorginho se orgulha de ter sido um dos que abriram o mercado internacional para colegas brasileiros, como o de Macau, na China. “Em 1992 e 1993, montando lá, consegui o vice-campeonato de jóqueis com 69 e 70 vitórias, além de levantar o Derby local. Logo depois, meu lugar foi ocupado por Manoel Nunes e Eurico Rosa, e bem depois por Fausto Durso e Luis Duarte.”

JB é agora instrutor de crianças em uma escola de dressage, a disciplina eqüestre olímpica que privilegia as habilidades do cavaleiro, muito popular na Europa. Trabalha meio período, pela manhã, e passa as tardes gerenciando o seu espaço no Orkut (www.jorgepaulielo.co.ok) , onde mantém contato praticamente diário com a legião de jóqueis brasileiros que trabalham na Inglaterra, Irlanda e Macau, e com amigos de São Paulo.

Voltar para o Brasil? Pouco provável, afirma. “Primeiro porque minha família já se adaptou ao novo país, depois porque para manter aqui a qualidade de vida que tenho lá, precisaria ganhar pelo menos uns 10 mil reais, algo impensável no nosso turfe de hoje.” Paulielo acrescenta que o governo inglês oferece enorme assistência aos que ganham mil libras (ou menos), que é o seu caso. “Pago apenas 10% do aluguel da casa em que moro, não gasto com remédios e tenho assistência médica e odontológica de graça. Aliás, vivo recusando aumento de salário justamente para não perder esses benefícios”.

De vez em quando, a saudade aumenta. Então, o antídoto é acessar sites brasileiros na Internet, telefonar para os parentes, ou então economizar libras para férias anuais no Brasil. Nas deste ano, deu até para uma esticada de uma semana na Bahia.

Na volta, foi a Cidade Jardim para rever amigos. Ao olhar para a ampla pista de grama, sentiu uma pontada no peito, de pura nostalgia. “Lembrei-me de Mr. Fritz, o melhor cavalo que já montei, especialmente na vitória em que ele, superando muitos problemas físicos, derrotou Much Better. E também de Nick de Mestre, outro estropiado que se superou para bater Jinwaki, um craque do Haras Equilia, vencedor do GP Brasil e do Pelegrini.”

Na saudade de Jorginho, um lugar especial para o pai, o também jóquei J.B. Paulielo, falecido no ano passado. Dentre as razões para que decidisse parar de montar, talvez tenha sido esta a que mais pesou. “Difícil continuar encarando desafios sem o incentivo do homem que me fez seguir a profissão”, conclui.

terça-feira, 8 de abril de 2008

Cábulas

Uma verdade incontestável: todo jogador, de qualquer espécie, é um ser supersticioso. Conta-se, a propósito, que Dostoiewsky, em vida um jogador compulsivo, não entrava nos cassinos sem antes murmurar fervorosamente preces ortodoxas. Pelo visto, sem muitos resultados, já que chegou ao fim de seus dias completamente endividado. Segundo um de seus biógrafos, o escritor russo precisou escrever às pressas uma de suas obras-prima, O Jogador, para cobrir as despesas do hotel onde se hospedava em Wiesbaden, depois de perder até o último tostão na roleta.

Tenho tido, ao longo dos anos, minha dose de supersticiosos, desde os que não dispensam um prosaico raminho de arruda na orelha, até os que cruzam os dedos às costas a cada largada, passando pelos que se servem da macumba para afastar mau-olhado ou os que se revoltam contra os deuses a cada pule furada.

Anselmo talvez seja o mais cabalístico de toda essa fauna. Já chegou ao extremo de viajar a Salvador com o único propósito de agradecer ao Senhor do Bonfim o fechamento de uma acumulada. Voltou com os joelhos em carne viva, mas feliz e agradecido.

Conheço também alguns que gostam de associar o próprio azar a atitudes de terceiros. Os chamados maniáticos. Mário, por exemplo, desiste de apostar toda vez que a pessoa que o antecede na fila do guichê opta pelo seu palpite. Danilo cancela as pules quando o animal que escolheu defeca no cânter. Francisco, há anos, só veste uma determinada camisa em dia de corrida.

De minha parte, faço força para acreditar que o sobrenatural nada tem a ver com o que acontece na raia. Que os resultados são fruto de variantes perfeitamente racionais. Mas, tal como o espanhol da fábula, não acredito em bruxas, pero que las hay, hay.

terça-feira, 1 de abril de 2008

Fina estirpe

Craque? Não, longe disso. Apenas um desses raros corredores de coração imenso, cujo instinto está acima de graves impedimentos físicos. Da estirpe de um Boticão de Ouro, por exemplo, que, prestes a vencer um grande prêmio, tentou cruzar o disco com fratura exposta.

Jurado era um desses gigantes das pistas, guardadas as devidas proporções. Correndo dos dois aos sete anos, quando ainda não existiam por aqui as facilidades de enturmação dos claimings, esse filho de Coarazito e Jurée conseguiu o espantoso cartel de 23 vitórias, cinco em Cidade Jardim, 7 no Tarumã e 11 em São Vicente, estas últimas praticamente consecutivas e uma delas em tempo recorde para os 1.100 metros. Detalhe: Jurado tinha os sesamóideos fraturados desde a estréia nas pistas. Uma lesão grave e irrecuperável, já que esses frágeis ossinhos, na base dos boletos dianteiros, é que absorvem todo o impacto de um galão.

Seu treinador na Pista Prateada, José Faurer, sempre teve a paciência necessária para lidar com as necessidades especiais do neto de Coaraze. Talvez por isso ele tenha obtido tantas vitórias. Uma dessas necessidades era que o animal precisava ficar deitado por três ou quatro dias, em repouso, sendo alimentado em cochos improvisados, até que, superadas as dores, ele se sentisse em condições de ficar de pé e praticamente “exigir” do seu cavalariço que o levasse para a beira da raia para gramear e corcovear. Outra era que só entrasse na raia para correr.

A coragem, porém, tem seus limites. As fraturas acabaram falando mais alto, sendo chegada a hora de encaminhar o campeão para uma justa e confortável aposentadoria. Acabou vendido a preço de banana para um sitiante de Itapecerica da Serra para servir de garanhão. Pena que tenha durado muito pouco, apenas alguns meses a nova e boa vida de Jurado. Por obra e graça de uma traiçoeira jararaca. Um triste fim, na verdade, para um corredor de fina estirpe.