terça-feira, 18 de março de 2008

O clone de jóquei

Vadeco tinha tamanho de jóquei, cara de jóquei, trejeitos de jóquei, só não era jóquei. Mas tais semelhanças bem que o ajudaram na dura vida de vendedor de barbadas. Por razões de segurança, o nosso clone preferia aplicar seus golpes em cidades do interior de São Paulo. Se a máscara por acaso caísse, estava seguro de que suas vítimas não iriam passar recibo de idiotas, nem fariam despesas com uma viagem, provavelmente inútil, à capital.

A estratégia de Vadeco era primária e raramente falhava. Seu estrategema: arrumar uma vítima para cada cavalo de uma determinada prova. Logo que saia o programa de Cidade Jardim, ele escolhia um páreo de poucos animais, de preferência de perdedores, mais sujeito a resultados surpreendentes. Já na terça, começava sua via-sacra, cooptando as vítimas previamente escolhidas. E para cada uma delas, a mesma ladainha: Estou puxando esse bicho há seis meses, chegou a hora de ganhar. É uma verdadeira barbada. O senhor joga x e dividimos os lucros.

No sábado, com as sementes devidamente semeadas, era só esperar o momento de uma única colheita, e torcer para que o rateio do vencedor fosse alto. Não raro, surgia pule acima de 20 por 1, garantia de lucros suficientes para dois ou três meses de hibernação.

E assim Vadeco ia levando a vida, sem atropelos e sobressaltos. Mas, como dizem os mais antigos, não há uma sem duas, chegou finalmente a hora do acerto de contas para o baixinho que se passava por jóquei. Com dinheiro suficiente para prolongadas férias, decidiu passá-las na Praia Grande. Tomou um ônibus do Rápido Brasil no Jabaquara, sentou-se em uma poltrona de janela do lado direito e se preparou para um bom cochilo.O cochilo virou sono profundo e ele sequer percebeu quando o ônibus quebrou a mureta de proteção de uma curva da Serra do Mar e se lançou por um precipício de uns 200 metros.

Foi o fim da via-sacra do Vadeco. Neste exato momento, é bem possível que ele esteja vendendo no céu suas barbadas para incautos . Ou seria melhor dizer, no inferno?

terça-feira, 11 de março de 2008

Dose sim, dose não

Era um tempo em que os bookmakers pululavam por aí, atendendo aos clientes por telefone e ou em chimbicas espalhadas pela cidade. Muitos proprietários se especializavam em toda sorte de artimanhas para pegar no contrapé quem se atrevesse a bancar seus jogos. Danilo, objeto desta historinha, era um dos mais ardilosos, tendo a seu crédito a falência de muitos banqueiros.

Uma de suas tacadas que viraram lenda aconteceu graças justamente ao pior dos seus defensores, um quatro anos perdedor, acostumado a fechar o lote toda vez que corria. Danilo fez vir dos Estados Unidos o então dopping da moda, capaz de melhorar o bicho em mais de um segundo, e cuja mancha ainda não era identificada pela cromatografia. O nome, se bem me lembro, era “cardioby”,

Danilo sabia, já há algum tempo, que seu treinador passava informações de cocheira para alguns banqueiros, por isso armou o que lhe pareceu uma infalível ratoeira: colocou uma dose do estimulante cardíaco em um frasco sem rótulo e uma dose de glicose em outro. Em tirinhas de esparadrapo, escreveu “sim” em uma e “não” em outra. Entregou os vidrinhos ao treinador, devidamente “identificados”, com a recomendação expressa de que iria telefonar umas quatro horas antes do páreo em que seu matungo correria para dizer qual das doses deveria ser aplicada. Se a “sim”, o bichinho iria para “o pau”, se a “não”, a vitória ficaria adiada.

Na hora combinada, Danilo ligou para a cocheira, dizendo que os banqueiros não estavam querendo aceitar seu jogo, de modo que deveria ser aplicada a dose “não”. O golpe ficaria para outra ocasião. Claro que o treinador imediatamente passou a informação para os books, dizendo que poderiam aceitar o jogo do “patrão” sem susto. Nem passou por sua cabeça que a dose “não” era de estimulante cardíaco e que a “sim” era de glicose.

Naquela tarde, o matunguinho agradeceu a “ajuda“ e cruzou o disco na frente, rateando 20 por 1, o suficiente para “tirar do ar” uns dez banqueiros e para compensar o seu preço original em pelo menos cinqüenta vezes. Danilo já foi desta para melhor, mas o treinador ainda vive e certamente já se perguntou milhares de vezes: "Por que fui tão ingênuo?".

terça-feira, 4 de março de 2008

Patranhas do João

João de Castro Godoy gostava especialmente de duas coisas: acentuar no vestir a sua semelhança com o ator Clark Gable e maquiar certas situações de corrida de modo a que cronistas de turfe desavisados as entendessem de maneira errada.

Naquela manhã, ele estava concentrado em “esconder” o verdadeiro potencial de um potro, anotado para estrear alguns dias depois. Convocou Nélio Carrara, então um jóquei modesto que trabalhava animais para suas cocheiras, deu-lhe instruções e foi se sentar na última fileira dos bancos do padoque, como fazia habitualmente há anos.

O potro largou da seta dos 1.400 metros e cobriu o percurso em pouco mais de 89”, com final de menos de 13” para os 200 metros finais. Uma marca assombrosa para a antiga raia de areia de Cidade Jardim. A título de comparação: o normal era os potros perdedores não baixarem de 90”, em corrida.

Tão logo desmontou, Nélio se dirigiu às pressas para o “patrão”, apontando para o Minerva de duas agulhas que tinha nas mãos. “Devo ter marcado errado, seo João, não é possível que um potro que nunca correu faça um tempo desses!”. Foi o bastante para que Godoy praticamente arrancasse o relógio de suas mãos e o atirasse padoque abaixo. “Desaprendeu, Nélio? Claro que nem chegou perto disso”. Desconsolado, o jóquei desceu as escadas e foi ver se ainda restava alguma coisa do seu cronômetro. De longe, alguns cronistas observavam a cena, com a certeza de que seo João estava aprontando alguma, mas sem saber exatamente o quê.

O tempo passou rápido e o potro, Zaluar, de criação do Haras Bela Esperança e de propriedade de Theotônio Piza de Lara, entrou na raia para a sua primeira corrida, montado por João Manoel Amorim. Na pedra, um rateio para além das expectativas de seu treinador. Claro que o filho do inglês Eboo deu um galope de saúde, cravando 88” para a distância.

Na segunda-feira, quando Carrara chegou para a rotina de todas as manhãs, um envelope lhe foi entregue pelo porteiro do vestiário. Dentro, um Minerva novinho em folha, dinheiro equivalente a três meses de salário e um bilhete: ‘Vê se aprende a marcar melhor com este relógio”. Nélio ficou muito satisfeito, claro, mas jamais esqueceu a humilhação por que passara pelas mãos do Clark Gable caboclo. E os cronistas, finalmente, compreenderam o significado da cena do relógio atirado ao chão.

A pão e água

Durante muitos anos, George Dallas, russo de origem e brasileiro por opção, enriqueceu a galeria de treinadores folclóricos de São Vicente. Seu sotaque carregado e seus métodos pouco convencionais de treinamento faziam dele uma figura única. E foi com ele que aprendi algumas lições, esta, por exemplo: são insondáveis os mistérios que cercam um puro-sangue de corridas.

No comecinho dos anos 80, Dallas recebera convite para treinar alguns animais arrendados por Helcio Meca ao Haras Coqueiro Verde. Um deles era Mau-Mau, cria do Haras Guaiuvira, genioso como o pai Georges Raft, e danado de corredor. Dallas inscreveu-o em um clássico em São Vicente, mas não contava com um imprevisto: a ração encomendada, por algum motivo, não chegara de São Paulo. Acostumado a improvisar, o russo não teve dúvidas: foi ao peão do prado, cortou sacos e sacos de capim, e depois à padaria do Abel, para comprar uma grande quantidade de pão amanhecido. Nos cinco dias anteriores à corrida, Mau Mau e seus companheiros de cocheira se submeteram à uma dura dieta de pão, capim e água.

Eu, que acompanhara todas as idas e vindas do russo, fiquei muito animado com a possibilidade de arrumar uma boa grana. Mau-Mau seria grande favorito e, fatalmente, fracassaria. Ledo engano! Dada a largada, o tordilhão tomou a ponta e foi colocando expressiva vantagem sobre os demais, até cruzar o disco com uns 12 corpos à frente do segundo colocado, como se estivesse possuído por uma força sobrenatural. Pouco depois, os alto faltantes anunciavam: “Mau-Mau acaba de bater o recorde dos 1.100 metros”.

Com cara de tacho, tirei do bolso um maço de pules e atirei-as ao vento. Ainda hoje, desconfio que Mau Mau, às escondidas do velho Dallas, fizera um pacto de sangue com os ton-tons macutes do Haiti. Bater recorde a pão e água? Só mesmo com a ajuda de um vodoo.