quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Ordem unida

Esta aconteceu em Belo Horizonte, nos duros tempos da ditadura. Não cito nomes por questões óbvias, mas garanto que a história é verdadeira.

Seis jóqueis combinaram “amolecer” um dos páreos, deixando de fora só o piloto que montava o azarão. Como já acontecera outras vezes, em tantos outros prados, o arranjo fez água e o matungo cruzou o disco na frente.

O pior, porém, ainda estava por vir. Na manhã seguinte, toda a vila hípica comentava o “desastre”, até que a história chegou aos ouvidos do presidente da Comissão de Corridas, justamente um coronel linha dura do exército. O homem não teve dúvida, convocou todo mundo para uma reunião em sua sala do quartel.

Eis o relato de um dos participantes: “Ficamos todos juntos, perfilados, como em ordem unida, enquanto o coronel desfiava um discurso sobre ética, caráter, responsabilidade. Por fim, o homem afirmou que a pena de suspensão seria trocada por um corretivo militar. Fomos, então, ncaminhados para um cubículo e ali confinados por 24 horas, a pão e água. Cara, nunca pensei que um dia iria lamentar não ter sido punido de acordo com o Código de Corridas”.


terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Por uma cabeça

Assistindo ao filme Seabiscuit, justo na parte em que o “patinho feio” impõe uma acachapante derrota ao melhor cavalo de sua época, me vieram à mente lembranças correlatas muito queridas.

Elas estão ligadas ao que aconteceu em um gélido fim de-semana de 1961. Eu e mais uns poucos brasileiros estávamos em Buenos Aires para acompanhar a participação de cinco cavalos nacionais no meeting clássico do GP 25 de Mayo, nos santuários de Palermo e San Isidro. Acompanhar, e muito provavelmente, perder em suas patas, já que aqueles eram tempos em que os gringos davam cartas e jogavam de mão, aqui ou acolá. Que ousadia querer batê-los em seu próprio campo de jogo? Pensávamos todos, mais que pessimistas.

Elizabeth, exímia velocista, seria a primeira a ir para o “sacrifício”. Mas, assim, sem mais nem menos, exibindo a linda farda solferino e azul do Haras Ipiranga, ela surgiu no disco à frente de um numeroso pelotão. Pouco depois, foi a vez de Derah, do Julio Zarzur, dar uma impressionante demonstração de poderio locomotor na milha. Por fim, Major’s Dilema, o melhor filho do excelente irlandês Orbaneja, triturou os adversários nos 2.200 metros.

Coisa espantosa. A multidão simplesmente não estava acreditando no que vira. Para dizer a verdade, nem nós, a não ser pelos dividendos, para lá de compensadores. Voltamos todos para o hotel para uma festa que varou a madrugada.

E a humilhação maior para os argentinos ainda estava por vir. No prova mais nobre, de domingo, ninguém acreditava que a vitória pudesse escapar de um dos representantes nativos. O máximo que concediam, aficionados e mídia, era que uma peruana, cantada em prova e verso, pudesse lhes dar algum trabalho. Os nossos Farwell e Escorial se colocavam na condição de outsiders, desapercebidos. Principalmente o primeiro, a quem coubera uma péssima baliza.

Dada a largada, Farwell fez o que já fizera em sua campanha invicta de 15 vitórias consecutivas em pistas nacionais, incluindo o mais recente GP Brasil: tomou a frente e foi quebrando um a um os que ousaram acompanhar o seu ritmo frenético. Bem antes da curva, a peruana já caíra batida, enquanto lá no fim do bloco, Escorial, levado por um calculista de primeira, Pancho Irigoyen, apenas espiava o ritmo alucinante imposto pelo patrício.

L.B.Gonçalves, jóquei de Farwell, me confessou dias depois que nunca vira uma reta tão comprida. “O disco não chegava nunca”, me disse, consternado. Ao fim e ao cabo, esgotado por duelos encarniçados, o pretinho do Haras Jahu entrega os pontos no derradeiro galão. Justo para quem? Para Escorial, certamente um dos mais completos atropeladores do turfe nacional. Uma cabeça separava os dois na transposição do disco. Tal e qual a letra do imortal tango, na voz de Carlos Gardel, Por Uma Cabeza.

Nas arquibancadas lotadas por 60, 70 mil fanáticos argentinos, um silêncio que se cortava a faca, quebrado apenas por gritos histéricos de brasileiros endoidecidos. O impossível tinha acontecido: ponta e dupla dos “macaquitos”.

Temos memória curta, porém. Pouca coisa restou dessa epopéia, a não ser na lembrança de uns poucos que a testemunharam. Talvez alguns recortes de jornais e um filme da época, zelosamente guardados pelo museu do turfe do Jockey Club de São Paulo. Muitos dos turfistas de hoje, abaixo dos 60 anos, sequer sabem direito o que representou essa jornada épica. No entanto, foi ela que nos livrou definitivamente de um incômodo complexo de vira-lata. Foi ela que, seguramente, levou ao reconhecimento internacional a criação nacional.

Bom que Ricardinho esteja por lá, quase meio século depois, escrevendo uma espécie de continuação dessa linda história, iniciada por cinco desbravadores inesquecíveis.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

No escurinho do Bonfim

Os jóqueis João e José Beça Paulielo, gêmeos idênticos, passaram muitas vezes um pelo outro, toda vez que lhes interessava a troca de identidade. Mas, substituírem-se em corrida, com sucesso, foi a glória.

A troca aconteceu no antigo prado do Bonfim. Nas palavras de João Paulielo, a coisa se deu assim: “Osório, um cavalo manhoso de São Vicente, fora inscrito em Campinas justamente numa semana em que o Zé estava suspenso. Assinei a montaria e me preparei para a viagem a Campinas. Antes do embarque, porém, meu irmão apareceu e disse em tom que não admitia réplica. ‘Eu é que vou pra Campinas. Com você, o Osório é capaz de nem largar’.

E assim foi, Zé apareceu no prado como se fosse o irmão João, montou Osório e voltou para casa com a vitória e um bom maço de notas. “No dia seguinte, ele me disse, rindo muito: ‘Sabe aquela clausura onde ficam os jóqueis? É um verdadeiro breu, ninguém enxerga nada. E no padoque nem perceberam que o bicho estava de bridão quando deveria ir de freio’.

A partir daí, João Paulielo passou a acreditar que, no Bonfim, à noite, todos os jóqueis eram pardos.