terça-feira, 29 de janeiro de 2008

O fetiche do número 7

Quando São Vicente dava corridas duas vezes por semana, às quartas e sextas-feiras (lá pelo fim dos anos 50, começo dos 60), muitos apostadores de São Paulo e profissionais de Cidade Jardim desciam a serra para ver e jogar nas corridas da pista prateada. Como integrante da turma, eu sempre me apressava a arranjar um lugar bem no fundo do ônibus para ler em sossego o retrospecto da Turfe Vicentino, coisa, aliás, que raramente conseguia.

Em uma certa quarta-feira, sentou ao meu lado o Francisco D’Avila, então treinador do Stud Seabra em Cidade Jardim. Ele tinha um animal inscrito na segunda carreira e precisava sentir “in loco” os progressos do bichinho. Tão logo saimos da Praça Clovis Bevilacqua, o “gringo” começou, em bom portunhol, uma lenga-lenga sobre uma história dos seus tempos de jóquei.

“Sabes, yo montara unas quantas veces uma eguita veloz e floxa. Largaba entre as punteras e desaparecia no directo. Imaginando que ela poderia se dar melhor em distância longa, dice entonces ao su compositor: “anote a Camponesa em dos mil metros, garanto la victória”. Asi fue. Por suerte, saiu um campo com apenas cinco competidoras. Tomei la punta, percorri todo o percurso sem ser molestado e crucei la meta na frente das outras quatro. Volvi ao padoque loquito para ver quales seriam mis ganâncias. Lá estava afixado no placar o número siete da minha montada e na pedra um rateio estratosférico”.

Que coisa! Corriam cinco e apregoaram o número sete? Olhei bem para a cara do Chico, à espera de um sorriso que confirmasse a peta que inventara. O “gringo”, no entanto, permaneceu impassível, nem sequer corou. Resultado, sem ter podido estudar os páreos, eu teria de apostar no escuro. Bela companhia eu arranjara, pensei.

Mas, estava enganado. Antes que nos separássemos ao descer do ônibus, D’Avila, talvez penalizado pelo meu desconforto durante o trajeto, quis me compensar, aconselhando-me a jogar uns "boletitos" em Varadero, sua inscrição no segundo páreo. O cavalo venceu disparado e, por ironia, sob o número 7. Voltei para São Paulo dormindo o sono dos justos e carregando nos bolsos uma nota preta. Valera mais que a pena fingir que acreditara na “façanha” da Camponesa, número sete.

domingo, 20 de janeiro de 2008

Um certo Capitão

Em 1962, os responsáveis pelo Haras Ipiranga decidiram, por sugestão do Capitão Bela Wodianer, à época o faz-tudo da família Lodi em matéria de criação de PSI, pela importação de Takt, um fundista alemão (por Gundomar), para ocupar a vaga deixada pelo francês Flamboyant de Fresnay. O problema é que o animal estava confinado na então comunista Hungria e de lá não sairia por vias legais.

O que fazer? O mesmo capitão, húngaro de origem e postado no lado austríaco da fronteira, não teve dúvidas: instruiu para que Takt fosse atrelado a uma carroça, como animal de tração, para assim sair dom país desapercebido. Os guardas fronteiriços enguliram a farsa e o valoroso reprodutor pôde, dias depois, chegar ao porto alemão de Hamburgo, de onde ambos, o capitão e o animal, embarcariam para o Brasil.

Por aqui, em apenas três gerações, Takt produziu vários filhos clássicos, sobressaindo-se Moustache (por Elizabeth), ganhador do Grande Prêmio São Paulo de 1967. Por obra do destino, ele e o capitão Bela, companheiros de viagem em um infecto porão de navio, morreram quase que simultaneamente três anos depois.

Um passarinho me contou

Alto, esguio, trigueiro, topete eriçado como de um galo-da-serra. Assim era Passarinho, personagem que marcou época nas tribunas populares de Cidade Jardim. Sua origem e ocupação eram um mistério, ainda que alguns jurassem ser ele filho de um ex-milionário, que trabalhava como copeiro em uma mansão do Jardim Europa. Sua compulsão por jogar só em grandes favoritos da reunião e em apregoar aos quatro ventos, depois de virada a “pedra” (totalizador ainda não existia) que o seu escolhido era uma grande barbada faziam dele a figurinha carimbada das populares. Outra de suas manias era correr a toda os cem metros de uma cerca a outra quando os cavalos passavam por ali. Caso o favorito vencesse, Passarinho gritava, punho erguido, repleto de pules: “Eu não disse que era uma barbada?” Quando o favorito perdia, para escapar das vaias, o homem sumia, talvez se escondesse em algum banheiro, ou simplesmente pegasse o ônibus elétrico, cujo percurso de volta ao centro incluía a avenida Europa.

Não sei exatamente quando, provavelmente em meados dos anos 70, Passarinho desapareceu, sem deixar vestígios. Teria se mudado de cidade? Teria morrido? Ou apenas tenha pressentido o triste destino das tribunas, condenadas ao vazio por obra e graça de uma nova classe, a dos agentes credenciados. Mas, na memória de muitos, Passarinho continua vivo. Ele é o símbolo maior de um turfe que jaz enterrado nos limites de arquibancadas silentes.

Adrenalina Sintética

Fui testemunha ocular (e auricular) de uma cena impagável que já faz parte do folclore das corridas curtas. Aconteceu em um certa cancha reta das muitas que se espalham pelo Rio Grande do Sul.

Jovino, gaúcho de sotaque carregado e quase sempre paramentado a CTG, é um narrador de ternos e finais muito requisitado por aquelas bandas. Daquela vez, tinha sido contratado a peso de ouro para descrever, com seu habitual entusiasmo, o desenrolar de uma final milionária. Quatro “fórmulas um” em 400 metros de pura adrenalina.

Mas, conversa vai, conversa vem, uma birita aqui, outra acolá, e o nosso narrador já estava pra lá de Bagdá no momento da largada. Para ele, o partidor era apenas um borrão e os trilhos linhas imaginárias. De repente, o estrondo das "gateras", liberando os corredores. Jovino só teve tempo de pegar o microfone e improvisar: “Largaram....passaram por aqui....chegaram!” A síntese das sínteses.

Muitos apupos e, no final, a frustração de um cheque não recebido. Ao dar partida em seu velho Passat, Jovino fez dois juramentos, que segue até hoje: nunca mais beber em serviço e passar ao largo daquela cancha e de sua copa.

Só para os não iniciados em retas: gateras são os boxes, trilhos cercam a piso privado de cada competidor, copa é o bar que abastece os retistas e CTG significa Centro de Tradições Gauchas.

Com os burros n’água

Uma das coisas que mais lamento em minha jornada de escrevinhador foi não ter gravado horas de conversa com Guaraná Santanna, seguramente o mais folclórico dos nossos treinadores, morto em meados dos anos 90. Se eu não tivesse sido tão preguiçoso, talvez pudesse estar colhendo hoje os frutos de um livro de lindas e pitorescas histórias, vividas por ele nos limites de inumeráveis vilas hípicas deste país.

Algumas, felizmente, retive na memória, como esta: início da década de trinta do século passado, as coisas estão difíceis para Guaraná, então iniciando-se como treinador em um já desaparecido prado de Petrópolis. Naquele domingo, precisava ganhar uma corrida a qualquer custo para convencer um proprietário a manter seus cavalos na cocheira. Mas, sua única inscrição, um consumado matungo, provavelmente seria dos últimos. O que fazer? A única opção que lhe ocorreu seria substituir o pangaré por um bom ganhador, semelhantes em pelagem e sinais. Só havia nas cocheiras um espécime nessas condições, mesmo assim manchado de branco na testa e em duas patas. No desespero, Guaraná não teve dúvida: muniu-se de um pincel e tinta preta para sapatos e “eliminou” as manchas do substituto.

Como previsto, o cavalo pintado cruzou o disco em primeiro, com vários corpos à frente do segundo colocado. Mas, o castigo sempre vem a cavalo. Quando o vencedor retornava ao padoque, desabou um temporal e a pelagem original reapareceu.

O próprio treinador me contou que nunca soube o que se passou na seqüência. Antevendo o desfecho de seu “crime”, embarafustou por um bambual que servia de cerca viva da raia e nunca mais botou os pés em Petrópolis. Rindo muito, Guaraná arrematava a história, com um jogo de palavras: “Quis ser muito esperto e acabei dando com os burros n’água”.